Carro de Resgate
Quando a velha senhora adormeceu na calçada, a lua já alcançava o meio
do céu. Um sem-número de estrelas fazia do frio uma noite igual a outras.
Embora soubesse que, durante o dia, a rua fosse movimentada em área
comercial, a calma era extravagante, naquela hora, e até dava medo.
Nenhum carro passava. Pessoa alguma se aventuraria a atravessar silêncio
e sombra, contrariando a desconfiança geral.
A velha senhora sentia-se única, portanto. Vulto. Espectro. Antes de
esticar-se, pousou duas latinhas usadas de leite Ninho no batente da porta
principal da loja. Ao contato do chão, tilintaram, num ruído inexpressivo,
que se espalhou.
Ao deitar-se, puxou a saia entre as pernas, virou de lado e, encostando a
cabeça no braço direito dobrado, dormiu. Dormiu. Sonhou... Sonhou?
Era uma velhinha pobre, fraca, fedorenta, feia, dolorida. Pessoa assim teria
que sonhar com juventude, força, bons ares, beleza deslumbrante e alegria.
Mas, não sonhou. Flutuou. Voou em universo etéreo, sem mágoa. Acima
das dificuldades. Para além dos limites que a Natureza lhe dava. Não era
corpo. Nada que a mão tocasse. Antes limbo da História do que eternidade.
Nem tempo longe, nem agora. Em sua simplicidade de mulher da rua,
moradora de nenhum lugar, imaginava que a vida não precisaria mais do
que um pingo d'água em lábios ressequidos. Luz do sol bastaria. Noite
para descanso, e nenhuma multidão. Solidão!
Estava assim, pacificada, quando um sacolejo de trem (ou vácuo de nuvem
em viagem de avião?) trouxe-a de volta ao mundo dos vivos: sol alto
explodindo dentro dos olhos, vozerio, tumulto, gente ao redor, falatório.
A bolha em que se enroscara estourou de repente.
-Ah meu Deus! Passei da hora. Dormi demais.
Ter dormido tanto assim era mais do que crime, num canto de calçada,
impedindo fluxo de passantes, atrapalhando quem queria entrar na loja
onde o proprietário, furibundo, vituperava.
Carro de resgate estacionou no meio-fio. Homens mal-encarados desceram,
caras de poucos amigos, fitaram a situação olhando para todos os lados,
medindo possibilidades, nos limites estatísticos onde número único diluía-se
no cômputo geral.
Foi por causa dessa estranha matemática que a boa velhinha, meio-dormida
e mais-que-acordada, foi jogada dentro do carro como saco de pancada,
de onde olhou através do vidro e gritou para todos ouvirem:
-Minhas latinhas!
As latinhas, bens que a vida lhe reservara, restavam no batente da calçada.
O condutor do carro acionou o motor de arranque, o veículo sumiu em
disparada, na esquina, aos solavancos, com a sirene ligada. Foi por causa
do barulho da sirene que ninguém mais pôde ouvir o que a velhinha gritava:
-Minhas latinhas! Minhas latinhas! Minhas latinhas...
O proprietário da loja, que nunca chutara na vida, deu pontapés nas
latinhas, cujos supostos conteúdos se espalharam na calçada: coisas
nenhumas. Eram nadas, nadas, nadas.
Em sua marcha desesperada atravessando a cidade, o carro de resgate
soltava chispas e deixava rastros: A mão humana não pode tocar o etéreo.
A mágoa é somente uma idéia que dói muito. A História não sobrevive à
eternidade. Há um limbo dentro de cada um de nós, que não se realiza.
Somos recipientes vazios jogados sobre a calçada. Tem mais gente
morando debaixo da ponte do que atrás de portas fechadas. Quem se
importa com o eterno, quando o que dói mesmo é a saudade?
Quantos zombadores atrevidos se têm acovardado diante das inevitáveis
tempestades que açoitam as suas vidas. É fácil revelar descrença na força
divina, quando tudo vai bem.
Todavia, nos momentos de agruras, inseguranças e sofrimentos, há sempre
um vislumbre de Deus como o Criador, Sustentador e Dominador da sua
obra majestosa!